Missão capoeira: Mestre China e a capoeira de Itabuna


Mestre China treinava há 43 anos no CSU, mas teve que desocupar o espaço


Mestre China é um dos nomes tradicionais da capoeira em Itabuna

 

Por Egnaldo França*

Itabuna é uma cidade de referência internacional quando se fala em capoeira devido à projeção de grandes mestres que contribuíram e contribuem para esse reconhecimento. Entre eles podemos destacar Josenildo de Sousa Santos: o Mestre China do Grupo CLARATE Capoeira. Nascido em Buerarema, veio para Itabuna aos cinco anos de idade, onde vive até hoje. Aos doze anos de idade, com a morte do pai, Josenildo, o filho mais velho, se torna o responsável em criar os irmãos, passou a trabalhar como ajudante de pedreiro e por isso na família é conhecido como Babá. Iniciou capoeira em 1978, escondido da mãe, porque nesta época o esporte era discriminado.

Seu primeiro mestre foi Antônio Rodrigues – o primeiro mestre a inaugurar academia de capoeira em ambiente fechado na cidade de Itabuna, a Academia de Capoeira Nossa Senhora de Fátima. Seguindo os critérios e ensinamentos do seu mestre, mais do que formar bons capoeiristas é preciso formar bons cidadãos e nesta trajetória de 43 anos já graduou mais de uma centena entre alunos formados e professores além de três Contramestres e quatro Mestres. China ressalta que outros dois mestres tiveram fundamental importância na sua formação: o Mestre Gabriel, que ensinou a ter sensibilidade com a dor do outro, a ter dignidade, a respeitar e ser respeitado e Mestre Alfredo na fase final de sua formação, que ensinou a ser cidadão, a ser humano. Portanto, “uma faculdade com graduação, pós-graduação e mestrado, a lição mais perfeita de vida que um ser humano pode ter, a maior ferramenta de transformação do ser humano no mundo”, afirma China.

Em 2016, no auge da capoeiragem, com uma forma física fora do normal, de repente uma apendicite estrangulada, uma cirurgia de urgência e uma bolsa de colostomia durante nove meses com uma outra cirurgia de reversão para colocar o intestino no lugar e outro tempo de recuperação. Posteriormente surgiu uma hérnia e ouras quatro cirurgias. Considera “o maior vale da morte” que tenha passado por toda a vida, hoje agradece a Deus por estar bem, poder voltar aos treinos normalmente e considera um aprendizado com tudo isso: “a vida é curta, a vida é bela e tem que ser aproveitada o máximo possível. A gente às vezes se apega a coisas muito pequenas e mesquinhas e o aprendizado maior disso tudo é que eu não devo desistir nunca porque muitas pessoas precisam da gente! Se a gente para, é uma gota no oceano que vai fazer muita falta e não podemos cruzar os braços diante de tanta miséria, de perder tantas criança para a bandidagem, para a prostituição e esse é o maior legado para nós que fazemos cultura. Somos verdadeiros heróis da resistência! A doença me ensinou a melhorar como pessoa. Eu sempre fui uma pessoa do bem, sempre quis ajudar o próximo… Eu tenho essa missão”, afirma.

O grupo CLARA-TE – Cultura – Luta – Arte – Regional – Angola – Terapia – Esporte foi uma ideia que surgiu através de um grande amigo Amir das Areias, um dos grandes capoeiristas daqui de Itabuna que expandiu a capoeira para o Brasil inteiro. Na época, ele deu um curso na Academia de Capoeira Nossa Senhora de Fátima, do Mestre Antônio, que depois passou para o Mestre Gabriel como Academia de Capoeira e Cultura Física de Itabuna, posteriormente foi para as mãos do Mestre Alfredo, que passou a ser Capoeira Zumbí dos Palmares e ele me deu essa ideia: CLARATE Capoeira – quer dizer “brilha capoeira, acorda capoeira que o espaço é seu!”. Assim o grupo saiu do Estádio Luiz Viana Filha para o Centro Social Urbano – CSU, no ano da inauguração em 1979 com o Mestre Gabriel, “eu moleque, com 14 anos já dava aula de capoeira e completamos 43 anos de trabalho naquele espaço”, afirma.

O Mestre China afirma que há dois meses, sem nenhum diálogo, o CLARATE foi expulso do CSU. “Minha dor foi a forma como fomos tratados depois de tantos serviços prestados sem ganhar um tostão do poder público! Falta de consideração, falta de respeito… Nunca nos deram uma camisa para realização dos nossos eventos. Sinto não só por mim, mas pelas famílias que são atendidas em nosso projeto”, lamenta o mestre. O CSU era uma grande referência da Capoeira Regional em Itabuna e assim a cidade e toda a região perde um importante símbolo pela falta de sensibilidade e responsabilidade na preservação dos bens imateriais da nossa cultura.

Recentemente, foi votado na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia a Lei Moa do Katendê, que versa sobre a salvaguarda e incentivo da capoeira (Art. 1º). Importante ressaltar que a capoeira já é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Cultura, porém, pela forma em que se encontram a maioria dos mestres e dos grupos, é possível afirmar que a valorização ideal está muito longe do contexto real. A capoeira saiu do Código Penal no fim da primeira metade do Século XX, mas sua prática continua sofrendo as mesma discriminações e violências que seus criadores, o povo preto, também vivem.

A luta por respeito, o zelo em cuidar do ser humano e a persistência pelo devido reconhecimento é o que move quem pratica a capoeira, que também a tem como instrumento de sabedoria, como afirma o Mestre China, “o sentimento que tenho é esse: de dever cumprido, pois se Deus me deu outra oportunidade, é porque ainda tenho muita coisa pra passar, muita e muito a aprender, porque a vida é um eterno ensinar e aprender, pois a capoeira tem um início, mas o seu fim é inatingível”.

 

Egnaldo Ferreira França

Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais; Licenciado em História; Especialista em Gestão Cultural; Coreógrafo; Integrante do Conselho Municipal de Políticas Culturais e do Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em Itabuna; Fundador e idealizador do Projeto Encantarte e do Pré-universitário para Afrodescendentes – PREAFRO.