Stalin distribuiu para os soldados russos “Guerra e Paz”, de Liev Nikolaevitch Tolstoi (1828-1910). A obra – épico retratando a reação de um povo ao invasor francês, na pessoa de Napoleão Bonaparte (1769-1821) – tida como a maior novela escrita no século XIX, levada o foi ao front para internalizar no imaginário da tropa, como nenhuma outra o faria, os valores da pátria Rússia resistindo ao poderio alemão no curso da II Guerra Mundial. O sentimento de nacionalidade refletido na derrota bonapartista por Tolstoi, em minúcias e detalhes, repercutiu não somente na Literatura, também na música (“Abertura 1812”, de Tchaikovsky).
A obra, no entanto, não traduz visão belicista como muitos possam imaginar (talvez Stalin, ao aproveitar-se dela em sua dimensão de exaltação da consciência de um povo contra a opressão do invasor), fato mais relevante nas primeiras “Crônicas de Sebastopol” (diários da guerra na Criméia, entre 1853 e 1856, onde serviu como segundo tenente de artilharia).
“Guerra e Paz” é, acima de tudo, uma reflexão em defesa do Homem, do Amor, da Paz e denuncia o quão estúpida e desprovida de sentido é a guerra. E leva o leitor a compreender, à luz da dimensão do conflito, a (in) significância humanística de Napoleão Bonaparte e de Alexandre I da Rússia (1777-1825).
O espírito que norteia a obra centrado está na experiência do próprio Tolstoi, que vivenciou a guerra por si mesma, e são os primeiros passos que o levarão à fonte da conversão por que passou em defesa dos valores e da redenção humana.
Sua reflexão leva-o duas décadas depois à interpretação literal do Sermão da Montanha, dentro da compreensão mais pura para a ética de Jesus, a ponto de ser reconhecido no seu tempo como um anarquista cristão e pacifista.
Tolstoi denunciou a intervenção russo-americana no Levante dos Boxers (1899-1901), liderando a Aliança das Oito Nações, onde inclusas a Áustria-Hungria, França, Império Alemão, Itália e Reino Unido, como o fez diante de outra intervenção, nos conflitos das Filipinas, capitaneada pelos mesmos Estados Unidos da América e pela Rússia.
Liev Nikolaevitch Tolstoi morreu de pneumonia na estação de trem de Astapovo, obrigado nela a descer (para tratar a febre que o acometia) quando buscava o lugar dos sonhos para sua pregação. Ele que, de origem aristocrática, renunciara às posses materiais, optara por praticar e defender a igualdade entre os homens. Suas reflexões em “No que acredito” (1884) trilham o caminho do pacifismo e da não-violência. Sua dimensão é tal que Gandhi – que se disse por ele influenciado – o tinha como “o maior apóstolo da não-violência” na modernidade.
Em Samara, nos anos 90 do século XIX, para onde se deslocara visando convivência com a natureza, viu-se diante da tragédia da fome que assolava a região. Mobilizou-se em defesa de ações humanitárias denunciando o alheamento das autoridades diante do quadro dantesco e conseguiu apoios interna e externamente para amenizar o caos, ele mesmo coordenando a ajuda aos miseráveis.
Morto, e levado por milhares de camponeses, muitos imaginaram que aquela gente o fazia por tratar-se do grande escritor, quando na verdade viam nele um igual que, pensador social e moralmente, tornara-se redentor para os desassistidos em busca da igualdade, frustrada na última viagem ao encontro da Esperança.
Os que se enfrentam na Ucrânia não leram “Guerra e Paz”.
Até porque, em outros instantes, quando lhes convinha (denuncia-os Tolstoi), uniram-se para intervir em assuntos de outros povos.
Resta saber se serão lembrados no futuro como o é hoje Leon Tolstoi, ou tão somente folheados verbetes em fragmentos da História, como Napoleão Bonaparte e Alexandre I da Rússia.
* Adylson Machado é advogado, escritor e professor