Um domingo de cão, ou melhor, de CORUJA


Neste artigo, a advogada itabunense Jurema Cintra detalha um caso cruel de racismo


Sou advogada previdenciarista, é uma ótima carteira dentre as profissões jurídicas, raramente existe uma emergência, não tem de ir pra delegacia tarde da noite com cliente, e quando chega no pagamento, na dita fase de execução, tudo  é contra um ser inanimado, que é o INSS, ou o erário público, um excelente pagador. Por isso que admiro tanto os meus colegas criminalistas que ralam nas madrugadas e feriados, e também os advogados trabalhistas que lutam para achar bens dos devedores que se escondem diuturnamente. Mas não se enganem, pois a urgência do Previdenciário é a FOME e a saúde, contudo no fim de semana a Justiça não abre para tal causa humanitária.

Assim, como previdenciarista, o dia 06 de agosto deveria ser um domingo tranquilo de descanso, como tantos outros dias dominicais de calor, sol e cervejinha na praia.

Eis que, viciada no Instagram que estou, vejo a postagem do colega Irenildo Gonçalves, amigo de longas datas , relatando que sofrera racismo.

Ligo imediatamente para ele e aí vem uma bomba, 1 hora e 30 minutos de um desabafo assustador, horrendo e nojento.

Irenilso estava numa famosa barraca de praia nos arredores de Porto Seguro, com um outro colega de profissão, conversando e consumindo. Irenildo não bebia nada alcóolico pois iria dirigir.

Foi no carro rapidamente para fazer uso de uma medicação e os suplementos da malhação, e, quando estava dentro do veículo, na área externa, eis que a proprietária do estabelecimento o aborda com frases pejorativas: 

Não quero esse TIPO DE GENTE AQUI, que traz bebida pra dentro do bar, é proibido.

Ao tentar se defender desta sandice, foi ainda mais agredido, e a proprietária exigiu que o mesmo fechasse a conta e fosse embora, o EXPULSOU e ainda tentou simular uma suposta agressão dele, homem, negro, forte, altivo, robusto, contra aquela “indefesa” senhora.

Um dia de cão, é saber que após anos de estudo, 2 graduações, pós-graduação, carteira assinada, registro na OAB, tudo que uma sociedade exige como ascensão social e econômica, após longos meses de  trabalho árduo, dia após dia, e quando FINALMENTE VOCÊ CONSEGUE SUAS MERECIDAS FÉRIAS,  a COR DA PELE, faz você ser “esse TIPO DE GENTE”  com direito à beicinho arrogante. No olhar preguiçoso do racista, nada conta, nada, apaga-se o ser humano, animaliza-se o outro, o olhar do racista é míope, como os bicho-preguiça, mas aquele animal coitado, tem uma função no ecossistema, já o racista é disfuncional, ele abala as estruturas civilizatórias, e nos escombros, se regozija com a barbárie.

Um homem com poder aquisitivo(ele consumia). Um homem com trajes aceitos pela branquitude (marcas famosinhas). Um homem com um carro (fruto de esforço, mas num país desigual como o Brasil demonstra status quo). Um homem com sua barba e cabelo muito bem feitos. Um homem saudável, musculoso. Um homem com fala bem articulada. Do ponto de vista dos estereótipos da branquitude, Irenildo preenchia quase todos. Ainda assim, o racismo não leva em conta o fator econômico, o racismo é cruel, é uma dominação perversa da estética. QUE TIPO DE GENTE  será que a senhora aceitaria em sua barraca de praia? O racismo estrutural é tão forte, ele é normalizado, como afirma o professor Doutor Silvio Almeida, que investiga o racismo como uma manifestação normal das sociedades e não como um mero fenômeno patológico ou algo que corresponde a uma anormalidade, o racismo é um mecanismo.

Eu sou uma mulher branca, cisgênero, cheia de privilégios, jamais seria abordada desta forma , como nunca o fui. Já sofri machismo inúmeras vezes e cansa, cansa muito, o ar do ambiente fica irrespirável,  mas nunca sofri racismo, não tem como você fugir da sua condição de negritude, mas os preguiçosos só veem a “melanina acentuada”, como aborda o filme Medida Provisória, que deveria ser obrigatório na formação de qualquer brasileiro, deveria ser condição sine qua non, para acessar várias coisas, não assistiu, não tira a carteirinha de estudante, por que o filme é uma pérola de letramento social.

Por eu nunca ter sofrido racismo, eu preciso me colocar num lugar de aliada, de falar muito sobre o tema em qualquer espaço e quando tiver uma mesa de pessoas negras, devo ouvir, devo ouvir silenciosamente e aprender, são as vivências do outro, a dor do outro, o estudo teórico do outro. Ouçam, ouçam mais, leiam, leiam mais. 

1 hora e 30 minutos de dores e martírios ao telefone que ouvi com acolhimento. A vítima, às vezes duvida que tenha passado por aquilo mesmo, de tão estapafúrdio, por que são palavras desumanizantes, ele nem era gente, era um “tipo de gente”, um desviante. 

O racismo é tão perverso, que está em todo lugar, mesmo num dia de férias, ao pegar um medicamento, algo tão sutil, momento banal. Mesmo com câmeras de segurança para provar que nenhuma bebida externa foi levada indevidamente ao bar, nada disso impediu aquelas palavras toscas, vis, pesadas, desumanizantes, cruéis e sim, criminosas.

Minha paz de domingo se acabou, não tem como ficar inerte ouvindo relato tão agonizante. Mesmo à distância, eu em Ilhéus e ele em Porto Seguro, articulamos as diversas medidas jurídicas, cíveis, consumeiristas, penais e tributárias, por que foram horas esperando a emissão da nota fiscal e essa demora é um indício de muitas outras coisas estranhas. 

Alguns tem olhos míopes e turvos de homem-preguiça, o racista tem uma preguiça mental que lhe impede de raciocinar, ele reproduz frases rasas. Palavras são a essência da humanidade, através de gerações construímos conhecimentos, saberes e significantes através das palavras, a coruja é o símbolo da razão, da ciência e da sapiência. Olhos grandes e atentos, caça seu alvo de forma certeira mesmo à noite, assim devemos atacar o racismo com olhos e garras afiadas e com palavras precisas e discussões profundas, jamais rasas.

Ah, outra coisa, eu não consumo em estabelecimento que desrespeite os Direitos Humanos, assim que sair a condenação, fazemos questão de comunicar em novo artigo a fim de que seu dinheiro, enquanto consumidor, não financie os racistas.


Jurema Cintra Barreto

Advogada previdenciarista 

Defensora de Direitos Humanos e Ativista Ambiental.