EGNALDO FERREIRA FRANÇA*
Neste ano de 2019, completa 131 anos da assinatura de uma lei destinada a tirar negras e negros do cativeiro: a Lei Áurea. Há quem acredite na benevolência da Princesa Isabel; há também quem duvide existir racismo e desigualdade racial depois de mais de cem anos deste feito. A questão principal é: para onde foram os ditos libertos e quais os reflexos na vida de seus descendentes?
Salto de 1888 para 2019, para iniciar uma reflexão com base em um acontecimento noticiado pelas redes sociais no dia 10 de fevereiro a respeito de uma representante de uma grande empresa na cidade de Salvador, BA que comemora seu aniversário homenageando o áureo período da casa grande. Na foto principal ela, a baronesa, posa ao lado de duas mulheres negras como suas mucamas. Esta cena emblemática retrata perfeitamente a obsessão de uma classe que sonha em voltar os privilégios de outrora onde seres humanos não passavam de meras mercadorias. Fato é que um sistema perverso não permitiu à população afrodescendente o acesso às políticas públicas de forma igualitária, como diz a Constituição Federal de 1988.
A formação das favelas se deu ao longo do século XX, principalmente nos morros das grandes e pequenas cidades, sem as mínimas condições de sobrevivência. Abandonados à própria sorte; as encostas fazem vítimas dos deslizamentos todos os anos, a exemplo do Rio de Janeiro. Na trilha dos desastres, geralmente está a população pobre, que quase sempre não tem outra opção de sobrevivência. Assim o país foi pego de surpresa com o rompimento da barragem de rejeitos de minério em Brumadinho, Minas Gerais, quando ainda chorava o desastre ambiental provocado pela mesma mineradora em Mariana. E ainda atordoados com estas tragédias, acordamos com a notícia da morte de dez adolescentes num incêndio de um alojamento improvisado nas dependências do Clube de Regatas Flamengo, no mesmo estado onde a imprensa, ao mesmo tempo noticia a morte de treze pessoas na Comunidade do Fallet, segundo a OAB, numa execução sumária provocada por policiais e segue, neste estado, sete mortos durante um temporal. Quem são as principais vítimas nestas tragédias? Tragédias ou crimes?
A população negra hoje representa cerca de 54% da população brasileira, de acordo com o IBGE, e mais de 80% desta está em situação de pobreza ou extrema pobreza, que representam mais de 90% da população carcerária. Hoje, ainda é a minoria nas universidades, em especial nos cursos ditos de maior prestígio, além do que mais de 80% dos homicídios são de jovens negros e moradores das periferias. E o que tudo isso tem a ver com a foto da casa grande moderna em Salvador? O que ainda observamos é que em 2019, negras, negros e pobres são as principais vítimas do que se convém chamar de tragédia brasileira. Se o caso Brumadinho e Mariana poderiam ter sido evitados, se a morte dos jovens atletas poderia ter sido evitada, se o genocídio da juventude negra pode ser evitado, então estes casos não podem ser comparados a desastres naturais ou fatalidades como uma avalanche no Monte Everest, um tremor de terra na Ásia ou um tsunami na Indonésia. Isto, sim, são desastres naturais. O que ocorre aqui podemos classificar como crimes, porém, o que se observa é a comoção diante das explicações das grandes corporações que vivem do lucro e da exploração das vítimas. Enquanto a “casa grande” ostenta o poder e comemora suas benesses, a classe trabalhadora e desassistida perece.
Nos últimos dezoito anos, o Brasil iniciou de fato uma escalada de implantação de ações afirmativas justamente para corrigir ou amenizar os impactos da exclusão social vividos por grande parcela do contingente negro desta nação, o que a Lei Áurea não deu conta nos 131 anos. Para Abdias do Nascimento: “uma possível tomada do poder pelos negros foi sempre um pesadelo perturbando o sono tranquilo das classes dominantes e governantes do país, durante todo o decorrer da nossa história” (NASCIMENTO, 2002, p. 30). Neste sentido, a festa da empresária em Salvador simboliza a nostalgia pelos tempos em que o chicote determinava as relações raciais e o lamaçal que varreu vidas esconde a vergonha de um país subserviente à exploração exacerbada e capitalista. Portanto, convictos de que não houve benevolência da princesa, seguimos firmes, movidos pela resistência.
- Mestrando em Relações Étnico- Raciais – UFSB; Licenciado em História e Pós – Graduado em Gestão Cultural – UESC; idealizador e fundador do Projeto Encantarte/PREAFRO, integrante do Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Itabuna.