Agenor Gasparetto
O escritor e filólogo italiano Umberto Eco (5 de janeiro de 1932 – 19 de fevereiro
de 2016), ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura pela
Universidade de Turim, Noroeste da Itália, em 10 de junho de 2015, em seu
pronunciamento, fez incisiva crítica às redes sociais enquanto disseminadoras de
informação. Isto porque teriam dado voz, palavra e palco nas telas da Internet para uma
“legião de imbecis” com pretensões de serem portadores da verdade. Reconheceu Umberto
Eco que esses sempre existiram. Todavia, falavam “em um bar e depois de uma taça de
vinho, sem prejudicar a coletividade”. Para o autor de O Nome da Rosa (1980) e de O
Pêndulo de Foucault (1988), entre muitas outras obras literárias, “O drama da Internet é que
ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Convém se fazer um registro aqui:
as redes lucram com a multiplicação aos milhões de inverdades, meias verdades, verdades
fora do lugar, um tsunami de informações replicadas, remunerando monetariamente
também os seus principais porta-vozes. Esses lucros e esses ganhos são espúrios posto que
resultam de atividade que semeia intolerância, ódios e preconceitos, e confunde as mentes,
envenena corações e induz ao erro. O crime está gerando lucros e remunerando.
O mundo em geral e a sociedade brasileira, em particular de 2015 para hoje, 2022,
pioraram muito em termos de capacidade de diálogo e de uma verdadeira comunicação.
Cada vez mais, posições extremadas ganham corpo. Em razão disso, fica muito difícil
discernir entre a verdade factual e a Fake News propriamente dita. A rigor, a verdade em si
parece significar cada vez menos. Vale o que contribui para atingir objetivos, não importam
custos e nem prejuízos. Tudo o que não estiver de acordo com a lógica de certos interesses
é sumariamente negado, seja a Ciência, seja o Papa, seja o Supremo Tribunal Federal, seja
o juiz, seja o professor, seja o vizinho ou até o amigo de longas datas, seja quem quer que
ouse contrariar o interesse em jogo. Daí, o mundo plano, a vacina com seus chips capazes
de quaisquer desgraças que possam acometer a um vivente ou com o poder de converter
vacinado em qualquer aberração da natureza e toda sorte de informações sabidamente
falsas, mas deliberadamente utilizadas, porque úteis a propósitos e que podem se prestar
para corroer a imagem de algum oponente que esteja no caminho, na presunção de que não
advirão consequências pela sua disseminação.
Reduziu-se muito o espaço para o diálogo, para a capacidade de dialogar, de
discutir, de ouvir o contraditório, de argumentar e de ponderar e, havendo argumentação e
fatos, reconhecer que a razão pode não estar conosco. Pais se desentendendo com filhos,
entre irmãos, entre vizinhos, entre colegas e amigos. Há uma dificuldade crescente e até
incapacidade de empatia. Vive-se tempos de certezas indiscutíveis. Ai de quem ousar
pensar diferente. Vive-se tempos em que até mesmo utilizar uma camisa de seu time de
futebol pode implicar riscos à integridade física.
Em matéria de religião e teologia, há quem pareça saber mais que o próprio Papa
sem sequer ler um único livro na área, xingando-o, contestando-o, condenando-o a rótulos
com o propósito de desqualificá-lo.
Em matéria de leis e de justiça, há quem pareça saber mais que os próprios
integrantes do Supremo Tribunal Federal, de quaisquer integrantes de tribunais, de juízes,
caso ousem contrariar interesses.
Vivemos tempos “estranhos”, como diria Marco Aurélio Mello, ex-integrante do
Supremo Tribunal Federal. Tempos muito estranhos em que o respeito ao cargo e à sua
liturgia se perdeu no caminhar que nos trouxe até aqui. Xingamentos de baixo calão passam
à ordem do dia, numa muito estranha nova “normalidade”, sem respeito, sem consideração,
sem escrúpulo. Fulano é isso ou aquilo por ouvir dizer; de tanto repetir, é qualquer coisa
que se queira imputar independentemente dos fatos e é uma condenação inapelável – não há
espaço para a dúvida, não há espaço para argumentos, não há razões, não há salvação nesse
tribunal personalizado de quem se acha contrariado e já decidiu a priori a culpabilidade e
clama por punição sumária. Está condenado ainda que essa condenação se aplique única e
exclusivamente a quem se quer condenar, que seja seletiva. Para os demais em situações
análogas, complacência ao máximo. Crime é o que o oponente faz. Quando feito por algum
aliado, não se aplica o rigor, pelo contrário, se racionaliza com qualquer banalidade apenas
para o silêncio não denunciar a arbitrariedade. Complacência e autocomplacência ao
extremo.
Não se trata de apenas uma questão do país. Por exemplo, entre as guerras que há
pelo mundo, a da Ucrânia ganha relevo pelo potencial de implodir a atual ordem mundial,
condenando o mundo a uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, para azar da velha
Europa e do Hemisfério Norte. No entanto, não há qualquer sinalização para ações
diplomáticas. É como se a velha Europa tivesse perdido o bom senso, a sabedoria, as lições
de sua própria história de conflitos, desgraças e tragédias, e estivesse caminhando
inexoravelmente para o abismo, outra vez mais.
Não que esse fato seja realmente novo, inédito. A Humanidade passa por épocas que
tendem a um maior grau civilizatório e outras, que tendem para graus mais elevados de
barbárie. Nos encontramos neste momento num desses segundos períodos de tempo.
Semelhante ao do presente, seguramente, parece ser o final dos anos 20 e nos anos 30 do
século passado. Esse paralelo parece assustador, por se conhecer as consequências, ainda
que aqueles acontecimentos ora sejam relativizados e minimizados pelo extremismo e pela
desumanização crescente. Parece inerente à natureza humana.
Thomas Morus, na obra Utopia, editada em 1516, falando dessa natureza humana,
afirmou:
Os homens têm gostos diferentes; seu humor é às vezes tão desagradável, seu
caráter tão difícil, seus julgamentos tão falsos que é mais sensato conformar-se e
rir disso do que atormentar-se com preocupações, querendo publicar um escrito
capaz apenas de servir e de agradar, quando ele será mal-recebido e lido com
desagrado…. A maioria se compraz apenas com as próprias obras. Um é tão
austero que não admite uma brincadeira; outro tem tão pouco espírito que não
entende um gracejo. (….) Outros são tão caprichosos que, de pé, deixam de louvar
o que aprovaram sentados. Outros têm seus assentos nas tavernas e, entre dois
tragos, decidem do talento dos autores, pronunciando condenações peremptórias
conforme seu humor, desgrenhando os escritos de um autor como para arrancar
os cabelos um a um, enquanto eles próprios se acham tranquilamente ao abrigo
das flechas, os bons apóstolos, de cabeça raspada como lutadores que não deixam
um pêlo para o adversário pegar eles (Obra reeditada pela LP&M. Porto Alegre,
1997, páginas 11-12).
Essa transcrição de escrito de mais de 500 anos mostra que não há nada de novo.
Contudo, esse mundo de mesquinhez e de miudezas que antes ficava no plano do cotidiano,
dos mundos particulares, com a Internet e suas redes sociais de um lado e a ideologização e
polarização de outro, ganha um insuspeito e grande palco, ganha voz, ganha plateias,
nivelando pelo mínimo tudo e todos. Parece que se adota um comportamento de “massa”
no sentido definido pelo escritor e professor, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Elias
Canetti (Bulgária, 25 de julho de 1905 – Zurique, Suiça, 14 de agosto de 1994), em Massa
e Poder (Editora UNB/Melhoramentos. São Paulo, SP, 1983). Há nesse comportamento e
nessas ações extremadas, marcadas pela polarização, componentes de “massa”.
O senso comum, com seus pré-conceitos, suas crendices e seus achismos, toma o
lugar da Ciência. Essa, por parecer muitas vezes se subordinar em primeiro lugar ao lucro,
favorece seu questionamento, desconfiança e mesmo sua rejeição. E a autoridade, seja em
que âmbito for, só o é enquanto validar e contribuir para se atingir objetivos. Sendo assim,
adeus ritos e liturgias. A vulgarização e a banalização se impõem como o novo referente. O
velho bom senso marca sua presença sobretudo pela sua falta. Fica cada vez mais distante,
no passado, a distinção entre cultura superior e cultura popular. O senso comum vai pouco
a pouco impondo a sua tirania e seu domínio, e a Internet com suas redes sociais está
viabilizando esse domínio.
Agenor Gasparetto
Sociólogo
Itabuna, 22 de outubro de 2022